Eduardo Galeano e o Futebol
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Mais frio que geladeira
Obediência, velocidade, força e nada de firulas: esse é o molde que a globalização impõe.
Fabrica-se, em série, um futebol mais frio que uma geladeira. E mais implacável que uma máquina trituradora. Segundo dados publicados pelo jornal France Football, o tempo de vida útil dos jogadores profissionais foi reduzido à metade nos últimos vinte anos. A média, que era de doze anos, caiu para seis. Os operários do futebol rendem cada vez mais e duram cada vez menos. Para responder às exigências do ritmo de trabalho, muitos não têm remédio senão recorrer à ajuda química, injeções e comprimidos que aceleram o desgaste: as drogas têm mil nomes, mas todas nascem da obrigação de ganhar e merecem chamar-se êxitoína.
Futebol modelo único
Dois mil e quinhentos anos antes de Blatter¹, os atletas competiam nus e sem tatuagens publicitárias no corpo. Fragmentados em muitas cidades, cada qual com suas próprias leis e seus próprios exércitos, os gregos se reuniam para os jogos olímpicos. Praticando o esporte, aqueles povos dispersos diziam: “Nós somos gregos”, como se recitassem com seus corpos os versos da Ilíada, os quais haviam fundado sua consciência de nação.
Muito mais tarde, durante boa parte do século XX, o futebol foi o esporte que melhor expressou e afirmou a identidade nacional. As diversas maneiras de jogar revelaram, e celebraram, as diversas maneiras de ser. Mas a diversidade do mundo está sucumbindo à uniformização obrigatória. O futebol industrial, que a televisão converteu no mais lucrativo espetáculo de massas, impõe um modelo único, que apaga os perfis próprios, como ocorre com esses rostos que se transformam em máscaras, todas iguais, após contínuas operações de cirurgia plástica.
Supõe-se que esse tédio se deva ao progresso, mas o historiador Arnold Toynbee já passara por muitos passados quando comprovou: “A característica mais consistente das civilizações decadentes é a tendência à padronização e à uniformidade”.
Democracia Corintiana
O futebol profissional pratica a ditadura. Os jogadores não podem abrir o bico no domínio despótico dos donos da bola que, de seu castelo da Fifa, reinam e roubam. O poder absoluto se justifica pelo hábito: é assim porque assim deve ser; e deve ser assim porque assim é.
Mas, será que sempre foi assim? Vale a pena lembrar aqui uma experiência que se deu no Brasil, há apenas vinte anos, ainda nos tempos da ditadura militar. Os jogadores conquistaram a diretoria do Corinthians, um dos times mais poderosos do país, e exerceram o poder nos anos de 1982 e 1983. Uma coisa insólita, nunca vista: os jogadores decidiam tudo, entre todos, pelo voto. Discutiam democraticamente e votavam o método de trabalho, o sistema de jogo, a distribuição do dinheiro e tudo o mais. Em suas camisetas se lia: Democracia Corintiana.
Após dois anos, os dirigentes afastados retomaram o controle e mandaram acabar com aquilo. Porém, enquanto durou a democracia, o Corinthians, governado por seus jogadores, ofereceu o futebol mais audacioso e vistoso de todo o país, atraiu as maiores multidões aos estádios e ganhou o campeonato estadual duas vezes seguidas.Suas proezas e belezas se explicavam pela droga. Uma droga que o futebol profissional não pode pagar: essa poção mágica, que não tem preço, se chama entusiasmo. No idioma da antiga Grécia, entusiasmo significa “ter os deuses dentro”.
A final das piores seleções
Como se sabe, no ano passado o Brasil ganhou a Copa do Mundo, disputando a final contra a Alemanha, em Tóquio.Embora ninguém o tenha sabido, foi disputada, ao mesmo tempo e muito longe dali, uma outra final.Foi nos picos do Himalaia. Mediram forças as duas piores seleções do planeta; a última e a penúltima do ranking mundial: o reino de Butão e a ilha de Monserrat, no Caribe.O troféu era uma grande taça, prateada, que esperava à beira do campo.Os jogadores, todos anônimos, nenhum famoso, tiveram um grande dia, sem outra obrigação senão a de se divertirem bastante. E quando as equipes terminaram a partida, a taça, que estava colada ao meio, foi aberta em duas e compartilhada por ambos os times.O Butão ganhara e Monserrat perdera, mas esse detalhe não tinha a menor importância.
¹ - N.T.: Presidente da Fifa – Federação Internacional de Futebol Profissional.
(Trad.: Jô Amado)
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