Contramanifesto do obituário poético
por João Valadares
A poesia é uma substância presente em quase todas as coisas. E é por isso que não pode ser taxada de reduto onde se esconde a sensibilidade. Não! Ela é mais do que isso! Está presente por toda parte, nos hospitais, nos celeiros, nos cemitérios, nos campos de futebol, dentro das geladeiras, na mais repugnante lata de lixo. Em cada mente, em seus diálogos internos, subjetivos, racionais, incoerentes, principalmente nos pensamentos incoerentes. Há aqueles que profetizaram: A poesia morreu! E de fato o mundo está estranho. Parece não haver tempo para palavras e versos, parece que temos muito sangue a derramar, guerras a começar e as namoradas parecem ganhar novos significados: se antes eram versos prontos, hoje não valem uma sílaba.
Ainda assim, podíamos nos defender com Antonio Cícero, dizendo que “a poesia é exatamente o que torna o arbitrário necessário”; para ser mais enfático: a poesia é necessária, mesmo depois de morta. Mesmo que os poetas maiores continuem fazendo versos no céu, tentando nutrir a fome das divindades; mesmo que os poetas malditos esbravejem no inferno seus cantos insólitos; aqui, em cima da bolota terra, descendo o rio, jogando críquete, chafurdando na lama, saltando de bungee jump e, por hora, até alimentando uma boca infantil, os poemas replicam de toda e qualquer direção: a maioria bêbados, entorpecidos de uma lucidez mortal, indubitavelmente necessária. Mesmo que a covardia para ler verdades afaste o homem moderno da poesia, e de alguma forma a peneira tampe o sol e feche os livros, não encontraremos em nenhum romance de José Saramago, em nenhuma tese de Sérgio Buarque de Holanda, em nenhuma grande reportagem de Caco Barcelos verdades tão sintéticas e assustadoras quanto as contidas nas (entre) linhas de um poema.
A poesia está morta, mas ainda grita seu manifesto!
Precisamos construir nosso próprio mundo. Quem matou a poesia fomos eu e vocês. O mundo parece não ter uma língua única. As gramáticas da língua universal nunca foram escritas, porque os mestres dessa arte não perderiam seu tempo, fazendo enciclopédias explicativas. Porque, no fundo, o que realmente assusta é a natureza desse jogo: as pessoas já não vivem sem conceitos.
Somos pós-modernos: o resultado de um individualismo dinâmico que proporciona uma adequação quase que instantânea em qualquer espaço. A mutabilidade das relações promove desprendimentos no sentido social, político, econômico e cultural. Como diz o sociólogo Zygmunt Bauman, “essa emancipação libertária é uma maldição disfarçada de bênção”. O maior problema da atual sociedade está justamente na ausência de se questionar e de se posicionar. Ela prefere não tentar reconhecer-se, sente-se absolvida por qualquer justificativa de senso comum. Somos intransigentes a novas questões, principalmente quando essas questões têm força suficiente para transformar o mundo.
O que quero dizer é que estamos livres para não ser ninguém. A sociedade que geramos sem a poesia não tem qualquer coisa de espontâneo, estamos todos quase que unanimemente treinados a não perceber a realidade. Criamos o nosso repertório de imagens, conversas, churrascos de domingo, formas de amar, de se pentear, de morrer, de mentir, assuntos a tratar, cultos a freqüentar; formas de socialização que somos capazes de aceitar dentro de nosso individualismo. Enquanto o resto, tudo o que está além do nosso nariz, cai em um processo de invisibilidade preconceituosa. É importante sabermos com clareza que no fundo somos todos culpados. De alguma forma nos beneficiamos da poluição, das guerras, da desigualdade social. Somos todos cúmplices das mazelas do mundo.
Mas, para falar do poema propriamente dito, a forma pode ser muitas coisas: chance, acaso, planejamento, sorte. O conteúdo, não. Só pode ser um. Para um poema não pode haver nada além do que isso, não se pode falar de outra coisa. Quando escreve um poema, o poeta deve estar presente, não preso na forma, preso em não ter forma. Não podemos acreditar em nenhuma manifestação artística que não seja universal. Não se pode fazer arte sozinho. Tudo é para alguém endereçado. E o que é para nós mesmos tem origem nas relações com os outros. Lembremos de ser bicho homem: ser social. O modernismo não somos nós. Se houver algum poeta modernista ainda Vivo, é porque está Morto. Sua poesia morreu. A forma, como escrava da liberdade estética morreu. O pior é que mundo inteiro sofre com isso. Não é uma questão da arte, é uma questão sociológica.
A poesia no sentido amplo definido por Aristóteles nos habituou a uma apreensão dinâmica do movimento histórico. É um agente de formação cultural. Não existe um só movimento de idéias de envergadura, nem uma só batalha política de que os poetas não tenham participado, na primeira linha, enfrentando um a um os inimigos da normalidade. A análise que nos cabe da diagnosticada morte da Poesia é que o modo de vida pós-moderno torna impossível a formação de um eixo cultural essencialmente universal. Algo que pudesse constituir-se como núcleo de um “Novo Renascimento” literário, artístico e social.
É aqui, nesse pequeno manifesto do caderno literário de uma imensa pequena revista, que convoco a poesia para inquietar-se socialmente, deixar de ser conceito e voltar a ser consenso. Porque, além de sermos um, somos o todo.
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