por Pedro Gondim Davis
Eu, aluno de graduação do curso de ciências sociais, aprendi muito da arte de ser antropólogo com um tal Pedro Archanjo Ojuobá*, Doutor formado nas ruas, sem nunca ter entrado em uma universidade (a não ser pela “porta de trás”: era bedel da Faculdade de Medicina), viveu entre livros, mulheres e festas. Das sistemáticas anotações em seu pequeno caderno (que com certeza foram vários, sendo sempre o mesmo) tirou todo o sumo de sua obra. Meticuloso e devoto de seu trabalho, conseguiu organizar seus escritos em quatro volumes: A Vida Popular na Bahia, Influências Africanas nos Costumes da Bahia, Apontamentos Sobre a Mestiçagem das Famílias Baianas e A Culinária da Bahia – origens e preceitos, todos publicados a custo de muito suor, pouquíssimo dinheiro e apoio incondicional de certos companheiros.
Na primeira metade do século XX, época em que se constituía o pensamento sociológico brasileiro, Archanjo abarcou em sua obra, mesmo sem uma base metodológica ortodoxa, alguns dos grandes temas pesquisados pela Antropologia Clássica: os mitos e a magia.
Buscava histórias e personagens da mesma forma que buscava as mais belas mulatas que subiam e desciam as ladeiras do Pelourinho - lugar em que foi montada a Tenda dos Milagres e que foi seu campo de pesquisa, sua moradia e seu quintal. Autor e personagem de acontecimentos fantásticos fazia da sua vida sua ciência e da sua ciência uma grande arte. Mulato baiano, bom de prosa e encantador, querido por toda a gente das ruas, Pedro Archanjo continua despertando reações das mais diversas naqueles que vieram depois dele; conseqüência dos muitos homens que foi, sendo sempre ele mesmo.
No entanto, o que particularmente gosto em Archanjo é o fato de ele ser uma personagem literária. Mais do que nunca, a linha muito tênue entre o real e o imaginário, entre o que um autor escolhe contar e o que não nos é revelado, se faz de invisível perante nossos olhos – olhos sedentos por uma ordenação objetiva das “coisas reais”. Estamos sempre transitando de um lado ao outro dessa linha (muitas das vezes nos equilibramos em cima dela; ou caminhamos com inadvertida desenvoltura, pisando com um pé em cada um de seus lados) sem nunca nos preocuparmos com a condição híbrida de nossas vidas.
Daí dá-se o árduo oficio do antropólogo: tentar dar conta desses aspectos frouxos e fugidios que constituem as relações simbólicas entre os homens; tão simples de serem vivenciadas e tão penosas de serem “agarradas”. E como não bastasse a delicadeza do conteúdo abordado, a forma pela qual ele é apreendido é a escrita. Ou seja, o exato momento no qual se cristaliza em uma folha de papel toda a espontaneidade que é experimentada na vida. Será então que tem outra forma de ser antropólogo que não sendo também um artista?
Ao brincar aqui com a figura de Pedro Archanjo (antropólogo/personagem), tento ressaltar o caráter “fluido constitutivo” (acredito eu) das relações entre a vida, a arte e a ciência. Visto pelos olhos de Archanjo a antropologia é ao mesmo tempo, vivência, arte e ciência. São três protagonistas em um espetáculo onde o importante não é descobrir qual dos três triunfa no final, mas sim compreender a coexistência fundamental dessas três esferas.
Sendo assim é sob a égide de Pedro Archanjo, brasileiro, mulato, sábio formado nas ruas, feiticeiro e, acima de tudo, uma personagem literária – que não deixa de ser real pelo simples fato de ter nascido da cabeça de um autor – é que pretendo continuar escrevendo e exercendo meu oficio de antropólogo e artista.
* Ojuobá: Termo que designa os olhos sagrados de Xangô, deus do trovão e do fogo.
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